A imortal Taça Ernesto

 

                       Yelmo Papa, sem camisa, e o patrono da Taça Ernesto, com as respectivas esposas       Angélica e Fátima, em dezembro de 2015

 

Imagine o que três garotos que moravam num pacato subúrbio da zona Oeste do Rio de Janeiro, longe da praia, que não tinha cinema, shopping (na época não mais do que cinco galerias chamadas de shopping em toda a cidade) nem fliperama, podiam fazer para se divertir nas longas horas vagas (na época as férias escolares eram de 30 dias em julho e, quem fosse bem nas provas, ficava tranquilo do início de dezembro até o fim de fevereiro)?

Acertou quem falou soltar pipa, jogar bola, subir em muros e árvores para “roubar” frutas ou então passar horas jogando dama, loto-víspora e, uma paixão da época: futebol de botão. A gente no Rio chamava só de “jogar botão”. Pois bem. Na primeira metade desta década, inesquecível pra quem era alienado político (a maioria da criançada, que era afastada de qualquer conversa dos adultos), formou-se um trio inseparável no desconhecido Jardim Sulacap (um bairro próximo a unidades militares da FAB e da PM, além da Vila Militar, que concentrava diversas unidades do Exército, tido como muito seguro pra morar) um pouco mais distante.

O trio – formado por mim, Carlos e Luiz Carlos – passava tardes inteiras jogando futebol (um cruzava, o outro finalizava e o Luiz, que devia ter 1,90m ou mais, tentava evitar os gols numa baliza formada pela calçada de minha casa e uma ripa fincada no gramado) ou disputando triangulares de botão. Estas competições começavam logo depois do almoço e chegavam ao início da noite, quando eram acesos os “refletores” do estádio da Braz do Amaral, 291.

Minha casa era a escolhida, pois era a única que tinha espaço pro bate-bola num quintal gramado (nossa brincadeira matou grande parte desta grama) e também por ter uma grande copa, onde uma mesa rústica servia de apoio para o campo de botão que meu pai fez, mas que nunca acabou de pintar. Ele só tinha as “4 linhas” e a demarcação das áreas, grande e pequena. O círculo central, a meia lua na entrada das áreas e o ¼ de círculo para a cobrança de escanteio nós tínhamos que improvisar, usando um pires e um pedaço de giz branco.

Não havia um de nós três que se destacasse sobre os demais. Todos éramos habilidosos, bem treinados e nos alternávamos na conquista dos torneios sem prêmio nem troféu. Aliás, havia prêmio sim: o prazer juvenil de ‘tirar onda” sobre o demais. “Hoje eu fui o melhor”, “vocês são fregueses”, etc..

Carlos e eu morávamos na mesma rua, mas Luiz vivia num apartamento com sua mãe e a irmã mais velha. Quando íamos até lá para ouvir o disco novo de alguma banda de rock progressivo (principalmente Emerson, Lake & Palmer, Pink Floyd ou o Terço) ou jogar uma partidinha no campo dele (o único que tinha pernas e não precisava ser colocado sobre uma mesa de cozinha) seu cunhado, o Ernesto, estava sempre lá. Por eu e Carlos andarmos sempre juntos (naquela época ninguém colocava em jogo nossa orientação sexual por ter um amigo inseparável. Deixando bem claro que apoio toda forma de amor), Ernesto, um cara sempre bem humorao e que tratava o Luiz quase como filho (este perdera o pai ainda criança, antes de conhecê-lo), nos chamava de prego e martelo, ao que Luiz completava: somos Reco-reco, Bolão e Azeitona (um trio de personagens de um gibi muito mais antigo que nós).

Eis que um dia resolvemos fazer um torneio sério, com jogos de ida e volta, regulamento e tudo. Eu, como sempre gostei de escrever e tinha uma Remington portátil que ganhara de Natal (e tinha que dividir com minha irmã) fui encarregado de criar e datilografar (os mais jovens entenderão quando eu disser digitar) as regras do torneio. O primeiro problema era saber quem seria “o Flamengo”, já que Carlos e Luiz eram rubro-negros. Pra mim não havia dificuldade, já que torcia para o outro lado do Fla-Flu.

O Carlos, que mora há mais de 30 anos em Curitiba, é um flamenguista ímpar, pois, vejam só, gosta do Vasco. Logo se ofereceu pra deixar o Mengão pro nosso amigo e ficou com o time do Gigante da Colina. Eu, não sei porque, não fiquei com o Fluminense e, na tabela, designei meu time como Corinthians (Aqui vale uma nota: a memória se perdeu nos anos, mas talvez o torneio tenha acontecido depois de 13 de outubro de 1977, quando o Timão conquistou o título paulista depois de 24 anos de jejum).

Tudo feito, datas marcadas, mas a pergunta veio: o que o campeão iria ganhar? Não lembro se falamos disso com o Ernesto ou ele ouviu e uns dias depois apareceu com um pequeno troféu. Daqueles simples, encontrados nas raras lojas de material esportivo que havia (naquele tempo eram as papelarias que vendiam estes artigos). Acho que foi o Luiz, sempre de raciocínio rápido, que batizou o prêmio de TAÇA ERNESTO. Eu tinha deixado um espaço na tabela da competição e datilografei o nome ali em cima.

Depois de jogos emocionantes, muito equilibrados e com poucos gols – só houve duas goleadas de 7X2 e 7X3 (uma aplicada por mim e outra sofrida pelo “meu” Timão) – acabei levando a TAÇA ERNESTO pra casa. Durante muito tempo ela enfeitou a estante no meu quarto. Um vez, jogando futebol com estes mesmos amigos, a bola entrou pela janela e a atingiu em cheio, quebrando seu suporte, que era de plástico. Paramos a brincadeira, lamentamos, mas seguimos rindo da farra.

A TAÇA ERNESTO se perdeu no tempo e nas mudanças de cidade que fiz, mas ela vive dentro de nós. O Luiz nos deixou de repente, há três anos (exatamente três semanas depois de minha mãe partir) e, quando cheguei a seu velório, Ernesto me recebeu com um sorriso de conforto. O “prego” estava lá pra despedir de seu querido cunhado-filho, mas o “martelo” não pode ir, pois estava em Blumenau e não conseguiu um voo para chegar a tempo.

Hoje (24/10) “martelo” está no Rio e vai representar o “prego” na despedida de nosso querido patrocinador, amigo e incentivador da amizade sincera, pura e imortal. O “cara lá de cima” chamou nosso Ernesto e a querida esposa (Fátima), os filhos Leonardo (flamenguista como o tio) e Rita, além dos netinhos terão que ser fortes. A gente nunca entende, mas a vida nos impõe estes momentos.

Para encerrar, e desculpem se estou cometendo uma indiscrição, Ernesto me contou que trabalhou muitos anos com um grande ídolo vascaíno que se tornou político e nunca falou pra ele que seu coração batia pelo Botafogo F.R. Ontem, meu querido amigo, nossos times empataram. Talvez não tenha sido a melhor homenagem pra você, mas se o futebol não nos deixou tristes, saber que não verei mais aquele seu sorriso no canto da boca, me chamando de prego ou de “maionese Yelmans” (também me dera este apelido) me corta o coração. Nunca te esquecerei. Até um dia, se Deus permitir.

Por: Yelmo Papa é jornalista, tricolor e nascido e criado no Rio. Há muito tempo deixou de se envergonhar de ser suburbano. Desde 2007 mora em Bom Jesus do Itabapoana (RJ).

 



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