O tempo, este senhor implacável*


 

Nunca gostei de ficar olhando o relógio, desses que ainda têm ponteiros, e pensar: este segundo que passou jamais voltará. Quando se é jovem às vezes dá pra perder um tempo em devaneios, sonhando com um beijo naquela garota (ou garoto, respeito os desejos de cada um), com raiva dos pais por não terem permitido ficar até mais tarde na rua ou não comprado o presente que a gente queria.


“Perder” um tempo ouvindo aquela música da moda, olhando os passarinhos ou esperando a chuva passar. Mas quando se chega aos 60, não acho prudente ficar ouvindo o tic-tac do relógio com a cabeça nas nuvens. Ontem mesmo recebi um impacto no peito ao saber que a Sandy, sim, ela mesma, a do Júnior, vai fazer 40 anos. Meu Deus! Outro dia mesmo ela estava com o irmão na tv, trocando a dentição, mas já era um passarinho afinado que só.


Sei que muitos a acham chatinha, nhem-nhem-nhem, muito certinha etc. Mas ninguém pode negar que ela tem um talento vocal raro e que soube aproveitar muito bem isso. Sandy Leah, junto com o irmão, o Durvalzinho Jr, cresceu diante de nossos olhos. Primeiro na televisão, nas novelinhas, depois na internet e nas redessociais®. E já vai fazer 40 anos, minha nossa! Aquela menininha.


Mas meu assunto não é a Sandy e sua generosa carreira, mas sim a passagem inexorável do tempo. Nos últimos quatro anos ele parece ter sofrido uma aceleração pra mim: levou minha amada mãezinha, um dos dois melhores amigos meus, de infância mesmo, meu jornalista preferido, os pais de um outro querido amigo, que sinto tão amigos quanto ele mesmo. Sem contar os números absurdos da covid e, mais recentemente, se foi o cunhado-pai do primeiro amigo citado.


Já foi tempo de eu morrer de medo da morte. Sei que é fácil falar quando nunca a olhamos cara a cara, mas a consciência de que ela é inevitável e alcançará todos quando menos se espera, ajuda a encará-la com mais firmeza. Coragem homem! Você é jovem e não vai morrer agora, dizem as pessoas com quem toco neste assunto. É claro que não penso em morrer tão cedo. Ao mesmo tempo, quero tomar precauções, pois, na mais otimista das hipóteses, já se foram 2/3 de meu tempo nesta existência.


Se ficarmos apavorados em cada esquina, é claro que podemos até morrer de susto. Aos 60 isso não é difícil, mas certas atitudes têm que ser tomadas. Se a gente tem tempo e dinheiro pra realizar alguns sonhos, devemos sim, realizá-los, mesmo que eles sejam caros e passageiros. Certo prazeres não podem ficar pra trás. Um amigo, há pouco tempo, comprou a motocicleta com que sempre sonhou. Ele disse, sabiamente, que “enquanto tenho saúde pra dar umas voltas nela vou aproveitar”. Com o que concordei plenamente e emendei: se seu sonho é esta moto, meu sonho é um trem. O trem que atravessa as planícies geladas da Sibéria e vai beijar o Pacífico quase lá no Japão.
Desde os tempos de moleque, quando olhava os tabuleiros de WAR dos amigos (era um jogo muito caro para um garoto do subúrbio carioca), eu queria conhecer a longínqua cidade de Vladivostok, no extremo Leste da União Soviética. Cresci e há uns tempos, por total falta de recursos, e sem ter de onde tirá-los, já tinha me conformado em ir até o lago Baikal (uma maravilha da natureza onde estão 20% da água potável do mundo), ver as únicas focas de água do planeta e viajar muitas e muitas horas olhando a paisagem pelas janelas dos trens da estatal russa Rossiskye Zheleznye Doroguie (RZD, em nosso alfabeto).


Mas foi depois da partida de minha mãe que minha amada esposa disse: agora que você tem tempo e condição vá realizar o seu sonho (“Eu não aguento tantas horas de avião e trem, pode ir sozinho”, disse ela adiantando que não iria comigo). Refleti por alguns dias, talvez três ou quatro, e resolvi aceitar o conselho. Devia ser setembro de 2019 e pensei: vou no ano que vem, fora do verão, quando tudo é muito caro e lotado, e quero ver a festa do Dia da Vitória (Que lá acontece em 9 de julho, com grandes desfiles na Praça Vermelha e em toda cidade russa as famílias desfilam com fotos dos parentes que deram a vida pra derrotar o nazismo).


Meus planos começaram e os obstáculos também, uns ruins, péssimos até, e outros agradáveis surpresas. Primeiro a pandemia que, mesmo sendo a Rússia a primeira a apresentar sua vacina, me impediu de viajar em 2020 e 21; depois a convocação pra assumir a vaga obtida em concurso na Prefeitura de Bom Jesus, o que adiou o projeto por pelo menos um ano; e por fim, espero mesmo que acabe logo, esta guerra inútil, sangrenta e que está maltratando povo da Ucrânia e abalando seriamente a economia da Europa.


Já pensei muitas vezes, fiz cálculos, ouvi pessoas e agora estou decidido: quero ir 2024. Prefiro que sem a guerra acabe (não sou ingênuo a ponto de acreditar que as sanções vai sumir tão logo a Rússia retire suas tropas do país vizinho, pois há muitos interesses geopolíticos neste bloqueio). Mas mesmo que o que o V. V. Putin chama de “operação militar especial” continue, não vejo tanto risco de viajar de Moscou para o Leste. A dificuldade maior é de não ter como comprar passagens e reservar hospedagem pelos sites conhecidos. Seria uma grande aventura, meio no escuro, e, mas acredito que dê certo, pois tenho uns contatos lá que podem me ajudar. Quero ir também a Volgogrado (fora desta rota) admirar a magnífica estátua da Mãe Pátria (só ela vale uma ida a esta cidade linear na beira do Volga, maior rio da Europa).


Não, senhores e senhoras, não quero arriscar minha vida, fazer loucuras e muito menos sinto que está chegando minha hora. Mas nunca se sabe. Pé na estrada?

 

 

 *Yelmo Papa é jornalista e esteve na Rússia em 2005

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